terça-feira, 31 de julho de 2007

A EVOLUÇÃO DA TRAÇÃO A VAPOR (continuação 2)

6. O padrão americano nas locomotivas a vapor

Como fabricantes de locomotivas os americanos foram insuperáveis, sendo o principal Mathias Willian Baldwin (1795-1866), um relojoeiro na Filadélfia. Quando em 1831, após receber uma encomenda do Museu da Filadélfia para construção de uma miniatura de locomotiva, resolveu ingressar no novo mercado se tornou o maior fabricante todo o mundo, tendo a Baldwin Locomotive Work, fabricado em seus 130 anos mais de 60.000 locomotivas a vapor [11].

Em 1900, quando começou a chamada Era de Ouro da tração a vapor, que foi até 1950, a participação da Baldwin era de 61% no mercado ferroviário americano, 10% no mercado industrial como um todo e participava com 29% das exportações. Em 1914 a participação havia caído no mercado ferroviário para 50%, devido ao crescimento da ALCO (American Locomotive Corporation) 40% e LIMA (Lima Locomotive Works), 10% , porém até o final da era do vapor manteve uma linha de produção que exportava equipamentos para todo mundo [12].

Produção em série de locomotivas na Baldwin Locomotive Work, EUA

A locomotiva que sucedeu a American, que foi inclusive a primeira importada dos EUA para a EFDPII, foi a Mogul, que começou a ser fabricada pela Baldwin em 1847. Esta locomotiva tem um perfil semelhante ao da American, apenas com seis eixos, sendo três tratores ao invés dos dois e um rodeiro simples como guia, ao invés do truque. Era a locomotiva padrão da ferrovia construída pelo engenheiro Paulo de Frontin, como linha auxiliar da EFCB na virada do século XX, que vencia a Serra do Mar sem túneis.

Mogul fabricada pela Baldwin para operação na Linha Auxiliar

Apesar de fabricantes europeus serem também fornecedores de equipamento ferroviário para o Brasil, foi classificação numérica proposta em 1901 pelo engenheiro mecânico Frederick Methvan Whyte (1865-1941), que apesar de holandês de nascimento fez sua carreira nas ferrovias americanas, que prevaleceu sobre todas as outras. O sistema Whyte, descreve a locomotiva a vapor pelo número de rodas, segundo sua função, a partir da dianteira da locomotiva:

Jogo de guia, à frente da locomotiva, não fazendo esforço para movimentar o trem, possuindo diâmetro menor para se inscreverem mais facilmente nas curvas, servindo de guias para as demais. Também são chamadas rodas-piloto, ou rodas dianteiras. A justificativa física para seu menor diâmetro é a mesma que explica o insucesso do volante de inércia vertical na primeira locomotiva de Trevithick, o efeito giroscópio, uma reação à mudança de movimento de massas girantes. Esta técnica pode ser observada inda hoje, nos tratores agrícolas, com rodas menores na frente utilizadas para guiar as grandes rodas de tração. Foi o trator copiou as locomotivas, não o contrário. Nas locomotivas específicas para trens de carga existia um único rodeiro dianteiro, enquanto nas locomotivas para trens passageiros, que exigem maior velocidade usava-se um truque com dois rodeiros.

Rodas motrizes são as que recebem o movimento dos êmbolos. Elas suportam a maior parte do peso da locomotiva para aumentar o atrito (aderência) nos trilhos, fazendo com que a locomotiva se movimente. As rodas de grande diâmetro foram utilizadas em locomotivas para trens de passageiros, enquanto as locomotivas de trens de carga tinham metade desta dimensão e as locomotivas de manobra, de diâmetro ainda menor, não precisavam de jogo guia.

Jogo de arrasto, formado pelas rodas de trás, geralmente embaixo da cabine e/ou da fornalha. Não fazem esforço para movimentar o trem, limitando-se a ser arrastadas. Também são chamadas rodas portantes, pois dão suporte ao prolongamento posterior da locomotiva (fornalha e cabine).

Apesar de contar rodas ao invés de eixos, que seria mais óbvio, como adotado na França e parte da Europa continental, a classificação de Whyte (americana) é a mais conhecida, achando muitos que é única e correta, quando na verdade é menos lógica, pois prevê um número ímpar de rodas por locomotivas. Geralmente as locomotivas são referidas por tipo, muitas vezes um apelido, adotado como uma marca por vários fabricantes. Tem-se, portanto, tipo Texas fabricadas pela Baldwin Locomotive Work, como pela American Locomotive Co. (ALCO) e até por fabricantes europeus como a SKODA, da Tchecoslováquia.

As tabelas a seguir apresentam a classificação das locomotivas pela contagem das rodas (Whyte), por uma combinação de números e letras (alemã), posteriormente adotada nas diesel-elétricas, a que conta os eixos (francesa) e a designação por tipo das que foram mais comuns no Brasil, tanto as simples como as articuladas [13].

Tabela 1 – Classificação das Locomotivas Simples

Rodas Whyte Alemã Francesa Designação
●●●● 4-4-0 2 B 2 2 0 American
●●●● 2-6-0 1 C 1 3 0 Mogul
●●●●● 4-6-0 2 C 2 3 0 Tenwheeler
●●●●● 2-8-0 1 D 1 4 0 Consolidation
●●●●●● 4-8-0 2 E 2 5 0 Mastodon
●●●●● 2-6-2 1 C 1 1 3 1 Prairie
●●●●●● 2-8-2 1 D 1 1 4 1 Mikado
●●●●●●● 2-10-2 1 E 1 1 5 1 Santa Fé
●●●●●●●● 2-10-2 1 E 2 1 5 2 Texas
●●●●●● 4-6-2 2 C 1 2 3 1 Pacific
●●●●●●● 4-8-2 2 D 2 2 4 2 Mountain
●● 0-4-0 B 0 2 0 Forwheel (manobra)
●●● 0-6-0 C 0 3 0 Sixwheel (manobra)
●●●● 0-8-0 D 0 4 0 Eightwheel (manobra)

Tabela 2 – Classificação das Locomotivas Articuladas

Rodas Whyte Alemã Francesa Designação
●●●●+●●●● 2-6-0+0-6-2 1 C C 1 2 3 0 – 0 3 2 Mallett
●●●●●+●●●●● 2-8-0+0-8-2 1 D D 1 1 4 0 – 0 4 1 Mallett
●●●●●+●●●●● 4-8-2+2-8-4 2 B 1 1 B 2 2 4 1 – 1 4 2 Garratt

A maior parte das locomotivas em operação no Brasil era de procedência americana, devido à maior robustez e boa adaptação às condições de via permanente precárias por falta de recursos para manutenção. As européias eram mais refinadas tecnicamente, especialmente as alemãs reconhecidas por suas caldeiras excelentes, porém frágil conjunto de “movimento” (estrados, rodas e braçagens) [14].

Em 1952 o Instituto Ferroviário de Pesquisas Econômicas tabelou 2.772 das 3.132 locomotivas a vapor existentes nas ferrovias brasileiras que poderiam ser recuperadas [15]. Mas não houve recuperação alguma, rapidamente a frota de locomotivas a vapor perdeu o significado.

Tabela 3 – Quantidade de Locomotivas no Brasil em 1952

White Designação Quantidade
4-6-0 Tenwheeler 730
2-8-0 Consolidation 690
2-8-2 Mikado 469
2-6-0 Mogul 390
4-6-2 Pacific 290
4-4-0 American 202
4-8-2 Mountain 124
2-3+3-2 Mallett (articulada) 111
2-2+2-2 Garratt (articulada) 48
TOTAL 2.722


Tabela 4 – Participação da Frota de Locomotivas no Brasil por Tipo

ANO Vapor Diesel-Elétrica Elétrica
1948 70,7% 7,4% 21,9%
1952 59,9% 14,9% 25,2%
1958 29% 48% 23%

Em 1952 o presidente Getúlio Vargas enviou projeto ao congresso de criação da Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA), por sugestão da Comissão Mista Brasil - Estados Unidos, grupo de trabalho que antecedia aos pedidos de financiamento.

Em 1958, quando foi instalada a RFFSA, a nova empresa herdou das 22 ferrovias estatais que foi sua origem, um parque de tração composto de 2 mil locomotivas a vapor e 475 diesel-elétricas, correspondente a 78% e 19% da frota, que entretanto, respondiam respectivamente por 20% e 48% da produção de transporte em tonelada-quilômetro. O crescimento do transporte de carga desde então até a “privatização” da RFFSA em 1996 foi multiplicado por dez, enquanto o de passageiros de interior praticamente acabou [16]. O crescimento do transporte de cargas foi todo apoiado nas diesel-elétricas, também de procedência americana.

Tabela 5 – Evolução do transporte na malha da RFFSA (1957-2005)

ANO Mil Passageiros Interior Milhões de TKU
1957 54.551 5.424
1964 63.872 8.093
1970 33.831 12.056
1980 13.799 33.223
1995 1.161 36.388
2005 - 56.613


7. Locomotivas a vapor mais utilizadas nas ferrovias brasileiras

As Americans foram utilizadas no Brasil até mesmo em operação rotineira, como na Estrada de Ferro Leopoldina (EFL) na década de 1950 [17], quando os americanos já estavam na 3ª. geração da tração a vapor.


A Tenwheeler, com truque guia, era a locomotiva mais comum quando a RFFSA foi criada. Era boa para trens de passageiros (transporte prioritário na época do monopólio das ferrovias) e com rodas motrizes de pequenas dimensões, possuía também esforço trator necessário para os trens de carga.
4-6-0 tipo Tenwheeer a mais comum, projeto original de 1847.

O segundo maior grupo era o das Consolidation. Na EFCB a série 700, da ALCO recebidas entre 1916 e 1920, foram apelidadas “camelo”, devido à caldeira com dois domos. Tinham uma ótima reputação de confiabilidade e desempenho sendo responsáveis, juntamente com as da série 600, por mais de 60% de todos os trens de carga até o início da era diesel [14].


2-8-0 tipo Consolidation projeto original de 1866

Outro modelo popular eram as Mikado, cuja designação decorre da exportação pela Baldwin deste modelo para o Japão, em 1906, quando ainda estava na lembrança uma ópera cômica estreada em 1885 chamada The Mikado de inspiração japonesa [18].


2-8-0 tipo Mikado ultrapassando uma Pacific [14]

Alguns autores consideram que as Pacifics foram as verdadeiras rainhas da época de ouro do vapor, pelo menos nos EUA, por terem sido projetadas com truque guia para tracionar trens de passageiros com velocidade de cruzeiro de 60 mph (96,5 km/h). A maioria dos modelos possuía rodas com mais de 1,70m de diâmetro.


4-6-2 tipo Pacific de grande porte da EFCB [14]

No Brasil as maiores locomotivas para serviços pesados foram as articuladas. A Mallett deve seu nome ao projetista suíço Anatole Mallett (1837-1919), que em 1874 patenteou este tipo de locomotiva. A primeira Mallett americana foi produzida em 1903 pela ALCO. Foram locomotivas que se adaptaram bem às difíceis exigências da Serra do Mar, com vários túneis úmidos, onde outras locomotivas perdiam aderência.

Mallett a locomotiva que vencia a Serra do Mar

Outra locomotiva articulada importada pelo Brasil para trabalhar na Great Western of Brazil, no Recife, foi o modelo Garratt 2-8-2+2-8-4, fabricado pela Henshel & South da Alemanha em 1952. Tratava-se de um projeto inusitado, comparando com os modelos ferroviários tradicionais, patenteada pelo engenheiro inglês Herbert William Garratt (1864-1913), podendo ser descrita, de forma expedita, como a um conjunto gerador de energia caldeira (fornalha + caldeira) apoiado entre dois tender dotados de conjuntos de movimentação (cilindros + braçagens + rodeiras motrizes).

Mallett pronta para subir de recuo a Serra do Mar por causa da fumaça nos túneis [14]

Apesar dos dias gloriosos as Malletts foram protagonistas de uma imagem que fica para sempre guardada na história ferroviária brasileira, quando num flagrante triste, apagadas, seguem para o cortadas e vendidas como sucata, num dos chamados Trem da Morte, numa fotografia do engenheiro J. A. D’Araújo Pessoa de 1952, quando passava pela estação de Três Rios. É uma dramática imagem do encerramento abrupto da era do vapor no Brasil, quando não se teve o cuidado em preservar pelo menos um exemplar de cada modelo para fins históricos, como bem assinalou outros autores da história do vapor nas ferrovias brasileiras [14].

Cinco Malletts sendo rebocadas para o corte no maçarico em 1952

Na última aquisição de locomotiva a vapor pela EFCB a concorrência dava alternativa para locomotivas diesel-elétrica. Com os principais fabricantes envolvidos na II Guerra Mundial, acabou-se recebendo as excelentes Texas série 1651 a 1657 de bitola métrica, para trabalharem no difícil traçado do Ramal de Nova Era. Eram locomotivas que possuíam sistema de rosca sem fim, denominado stoker, para transferência do carvão do tender para a fornalha, aliviando o trabalho do foguista [14].

2-10-4 tipo Texas sobreviventes quando transferidas para EFTC

Estas locomotivas foram posteriormente transferidas para a Estrada de Ferro D. Tereza Cristina, em Santa Catarina, que foi a última divisão da RFFSA a abandonar a tração a vapor, no fim dos anos 1980, já que nesta ferrovia destinada prioritariamente ao transporte de carvão mineral, o combustível era fornecido em condições vantajosas de preço. O que realmente contribuiu para a dieselização da EFTC foi o custo de manutenção e as precárias condições de fornecimento de peças sobressalentes, já que foi uma das últimas ferrovias em todo mundo a operar comercialmente com tração a vapor.
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Referências Bibliográficas:
[10] David, Eduardo Gonçalves A ferrovia e sua história. Edição AENFER-AMUTREM, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1998, p. 75.
[11] Chant, Christopher The world’s railroads. Chartwell Books Inc. Edison, NJ, USA, 2002, p. 79.
[12] Lamb, J. Paker Perfecting the American steam locomotive. Indiana University Press, Bloomington, Indiana, USA, 2003, p. 14.
[13] Amaral, Áttila do Manual de engenharia ferroviária. Editora Globo. Porto Alegre, RS, 1957, pp. 416-418.
[14] Coelho, Eduardo J.J. & Setti, João Bosco. A era diesel na estrada de ferro central do Brasil. Coleção AENFER, Rio de Janeiro, RJ, 1993, pp. 3-12.

A EVOLUÇÃO DA TRAÇÃO A VAPOR (continuação)

3. A Ferrovia é anterior às Locomotivas

É interessante comentar que vias férreas (wagonway) já existiam antes da locomotiva ser inventada. A figura mostra uma via de transporte guiado entre a mina de carvão de Little Eaton e o Derby Collery, próximo de Derby na Inglaterra [3], com carroções tracionados pela força do cavalo, o animal que desde os primórdios da civilização foi o principal auxiliar para que homem vencesse distâncias terrestres. Nos vagonetes das minas de carvão, as carroças guiadas sobre uma superfície rígida (de ferro ou madeira) ofereciam uma resistência ao rolamento inferior ao solo (principalmente quando coberto de neve ou lama pelo desgelo).

A solução de tração animal de veículos ferroviários sobreviveu até mesmo quando já existiam as locomotivas, pois antes da eletricidade ser aplicada no transporte público, foram mulas arrastando bondes sobre trilhos que garantiam a mobilidade de milhares de pessoas por dia nas ruas estreitas das cidades que cresciam no século XIX, pelo início da urbanização.

Wagonway ligando a mina de carvão “Little Eaton” ao Canal de Derby

Antes das ferrovias os canais artificiais como alternativa de transporte na Europa, na Ásia, no Novo Mundo e também no Brasil, de forma embrionária, embora não seja muito conhecida a experiência brasileira.

A monocultura açucareira foi introduzida na região de Campos dos Goitacazes em 1750, chegando a Quissamã em 1798, quando foi construído o primeiro engenho junto à antiga sede da fazenda Machadinha. A região chegou a ter sete engenhos e toda produção era transportada em carros de boi até o porto de Imbetiba, em Macaé, onde eram embarcado para o Rio de Janeiro e exportada. Visando aumentar a produtividade, os proprietários decidem pela implantação de um Engenho Central e melhoria no sistema de transporte.

Situação atual do Canal Campos-Macaé
(foto Goreth Kling, Quissmã, 2006)

Pontes ferroviárias interromperam o Canal
(foto: Goreth Kling, 2006)

Ao longo do Canal, antigos casarões da época de ouro do açúcar
(foto: Goreth Kling, 2006)


Em 1843, quando Irineu Evangelista de Souza, o futuro Barão de Mauá, já havia iniciado a construção da sua primeira ferrovia, inicia-se a construção de um canal que teria cerca de 100 km ligando a bacia do rio Paraíba do Sul, em Campos, ao porto de Macaé, passando pela Lagoa Feia , Quissamã, Carapebus e dezenas de usinas de açúcar.

Nesta ocasião, apesar das ferrovias já serem uma realidade em outros países, no Brasil a primeira ferrovia só seria inaugurada em 1854. Portanto o transporte fluvial era uma recomendação correta, além de permitir a drenagem da água alagadiça, onde proliferavam mosquitos.

A construção do canal durou 15 anos, empregando milhares de escravos das fazendas nos trabalhos de escavação, sendo inaugurado em 1861, com movimento crescente até a chegada da ferrovia na região. Esta ferrovia, a Estrada de Ferro Macaé-Campos foi criada pela lei no. 1.464 de 19 de novembro de 1869 e uma concessão com privilégio de 50 anos foi dada em 3 de fevereiro de 1870. Para sua construção organizou-se a Cia. Estrada de Ferro Macaé a Campos, incluindo o privilégio da navegação a vapor entre os portos do Rio de Janeiro e de Imbetiba. Na época este porto era o 5º. em movimentação no Brasil, com todas as mercadorias de exportação e importação circulando pelo Canal Macaé-Campos.

Em 10 de agosto de 1874 foi inaugurado o trecho inicial da ferrovia, entre Imbetiba e Carapebus, com 33 km, passando por Macaé. Em 13 de junho de 1875 o trecho foi completado até Campos, completando 96,5 km de extensão. Repetiu-se o que aconteceu na Europa e nos EUA, quando a ferrovia, com suas locomotivas a vapor, custo operacional baixo, alta velocidade de circulação e qualidade de serviço, comparativamente ao transporte fluvial e animal, aniquilou o tráfego pelo maior canal artificial do Brasil, como fez com a primeira rodovia pavimentada, a União e Indústria, inaugurada também em 1861.

Nem canais artificiais nem rodovias bem pavimentadas para tração aninal conseguiam deter o avanço da novidade em transportes: a ferrovia a vapor.


4. As Primeiras Ferrovias

Sendo a locomotiva uma novidade passível de vários aperfeiçoamentos mecânicos, a partir da Inglaterra logo as ferrovias se espalharam pelo mundo. Na França a primeira ferrovia foi inaugurada em 1832, entre Saint-Etienne e Anfrezieux; na Alemanha em 1835, a Ludwisgsbahn entre Fürth e Nuremburg; na América Latina, a primeira ferrovia inaugurada foi a de Cuba, em 1837, ligando Havana a Guines.

Foi nos Estados Unidos que as ferrovias tiveram seu maior desenvolvimento. Em 1827 a primeira ferrovia americana a Baltimore & Ohio Railroad iniciou sua operação, ainda com tração animal, com a expressão britânica railway americanizada para railroad. Em 1829 a primeira locomotiva a vapor importada da Inglaterra, fabricada pelos Stephenson, trafegou por uma ferrovia americana, na Delaware & Hudson Railroad [4], seguido logo depois por outras ferrovias, como a primeira projetada nos EUA a Tom Thumb, que inicialmente perdeu uma corrida disputada com um cavalo em 1830 [5].

Réplica da Tom Thumb operando no B&O Railroad Museum

Apesar de ter perdido a primeira disputa, o vapor vencia a força do cavalo na economia, comprovando do outro lado do Atlântico uma redução de até 30% nos custos do transporte por tonelada-milha que haviam sido demonstrados pelos diretores da Stockton & Darlington em 1827. Com grandes extensões a vencer, logo os americanos superaram os ingleses, os inventores da ferrovia na extensão de linhas e fabricação de material ferroviário.

Uma interessante interpretação da história, uma disciplina que sempre comporta releituras, justifica o crescimento dos EUA comparado com o do Brasil, partir da correta exploração das reservas de carvão nos Montes Apalaches. Até 1750, época do Tratado de Madri, que estabeleceu novas fronteiras entre Portugal e Espanha, a renda e o conhecimento territorial da América do Sul eram muito maiores do que a renda e o conhecimento da América do Norte, com os americanos restritos às 13 colônias da América Inglesa. A abundância do carvão e a máquina a vapor de Watt, entretanto, tornaram possível se adotar no norte um modelo de negócio diferente da aristocracia do sul, mais voltada para a exploração agrícola com uso intensivo do braço escravo. Devido ao carvão o vapor criou uma nova Revolução Industrial no outro lado do oceano Atlântico [6].

Por uma feliz coincidência, em 1848, no final da guerra dos EUA com o México para anexação de grandes extensões de terras, foi descoberto ouro na Califórnia, que desencadeou uma corrida, atraindo gente de todo mundo. Para os americanos da costa leste, a rota mais segura era a marítima, circulando a América Latina pelo cabo Horn. O Rio de Janeiro era um porto de parada obrigatória, o que ampliou o mercado para produtos industrializados americanos em troca da produção agrícola brasileira, especialmente o café. A chamada Tarifa Alves Branco de 1844 unificara as taxas alfandegárias em 30%, acabado com o privilégio de importação de produtos ingleses, que desde a chegada de D. João VI em 1808 pagavam 15%. Além da diversificação de mercados, esta medida gerou saldos que sustentou por muitos anos o Segundo Reinado e a própria unificação do Brasil através da centralização do poder junto à principal fonte de riqueza: o café do vale do rio Paraíba do Sul.

Enquanto as primeiras locomotivas inovavam nos projetos, os primeiros carros de passageiros mantinham uma nítida inspiração nos veículos do tempo da tração animal, como pode ser visto nas figuras, a primeira mostrando um trem da Mohawk & Hudson Railroad [7] e a segunda uma foto clássica da primeira ferrovia brasileira, a Estrada de Ferro Mauá, inaugurada em 30 de abril de 1854, com os carros de passageiros inspirados nas diligencias.

DeWitt Clinton rebocando carros entre Albany e Shenectady, 1831

A locomotiva número 1 Baronesa na inauguração da E.F.Mauá em 1854

Por ter o Brasil ingressado mais tardiamente na era do vapor, a locomotiva Baronesa, fabricada em 1852 por Willian Fairbain & Sons (denominação em homenagem à esposa do Barão de Mauá, o empresário Irineu Evangelista de Souza), assim como a locomotiva Princesa Imperial, fabricada por Robert Stephenson (denominação homenageando a imperatriz D.Tereza Cristina), para a Estrada de Ferro D. Pedro II (EFDPII), inaugurada em 29 de abril de 1858, exibem em comum roda guias menores na dianteira. A Princesa Imperial, embora poucos anos mais nova, apresenta linhas mais modernas, como a cabine para o maquinista e vagão tender. Um ponto comum era chapa de cobertura, como uma espécie de “pára-lamas” sobre as rodas motrizes, que constitui uma diferença mais visível das locomotivas inglesas para as americanas dos primeiros anos da era do vapor.

Locomotiva Princesa Imperial da EFDPII inaugurada em 1858

Em 1860, quando as ferrovias brasileiras engatinhavam, com pouco mais que uma centena de quilômetros, a malha americana já atingia 49.288 km [8], extensão nunca alcançada pelo Brasil. Nenhum outro fabricante mundial de equipamento ferroviário conseguiu a escala produtiva dos americanos.

5. Evolução das Locomotivas

Na Guerra Civil Americana (1861-1865) o objetivo principal era sempre destruir as ferrovias e reconstruí-las foi também o primeiro objetivo quando a guerra terminou. As locomotivas Americans foram as mais utilizadas, tanto durante o conflito como depois na reconstrução, quando o presidente Abraham Lincoln, ao perceber durante a guerra os problemas logísticos decorrentes das 13 bitolas diferentes, determinou sua unificação em todo o território americano.


“General” locomotiva American veterana da Guerra da Civil 1861-65

Foi também devido a Lincoln, que em 1862 durante a guerra, determinou a ligação ferroviária costa a costa, materializada na que é, provavelmente, a fotografia mais divulgada da história ferroviária, a célebre junção, no dia 10 de maio de 1869, em Promontory, no estado de Utah, das linhas da Central Pacific Railroad com a Union Pacific Railroad, a primeira ferrovia transcontinental. Fazem parte da pose de autoridades e operários duas Americans, a da esquerda, chamada Júpiter, com chaminé balão, indicando que queimava lenha e havida chega à costa oeste dando a volta pelo cabo Horn, e a da direita, simplesmente Número 191, com chaminé cilíndrica, indicando que queimava carvão mineral [9].

Duas Americans na primeira ferrovia transcontinental, Utah, EUA, 1869

Nove anos depois, no Brasil, em 1877, na cidade paulista de Cruzeiro, houve também a uma importante junção de ferrovias, mas com bitolas diferentes, pois a linha da EFCB tinha bitola de 1,60m e a linha da EF São Paulo - Rio de Janeiro era métrica. Nenhum presidente da república brasileiro se interessou em unificação de bitolas.

No que se refere às locomotivas de lastro, também no Brasil as práticas Americans, com uma silhueta de inesquecíveis filmes de Far-West, eram as preferidas para obras de construção, como na EFCB no prolongamento para Monte Azul, em meados da década de 1940. Quase um século depois dos americanos terem ligado o país costa a costa, o Brasil estava ainda ligando as regiões Sudeste e Nordeste por ferrovia. Em ambas as Americans posavam para fotos históricas [10].


Valente "American" de novo na linha depois de descarrilada durante as obras

American de Lastro trabalhando nas obras da linha para Monte Azul em 1944

American em plena operação na década 60 do século XX
Os ferroviários da Estrada de Ferro Leopoldina que posam não
imaginam que estão diante de um equipamento concebido em 1837

Quando foi construída a Estrada de Ferro Mauá, em 1854, a tecnologia preconizada pelos ingleses para vencer serras era o sistema funicular, adotado na São Paulo Railway em 1867, entre Santos e o Planalto. Pelo alto custo envolvido, a estrada pioneira finalizou na Raiz da Serra, com 16,3 km de extensão. Chegou a Petrópolis somente em 1884, perto do fim do Império, quando a EFCB já finalizara com a bitola larga em Queluz de Minas, hoje Conselheiro Lafayete, foi que adotando um sistema de cremalheira patenteado em 1863 pelo suíço Niklaus Riggenbach e aplicado pela primeira vez em 1870. A tecnologia foi adotada tanto na E.F. Príncipe do Grão Pará para Petrópolis como na Estrada de Ferro Corcovado, em 1885.

Locomotiva Baldwin no sistema cremalheira Riggenbach, 1885

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Referências Bibliográficas:
[3] Chant, Christopher The world’s railroads. Chartwell Books Inc. Edison, NJ, USA, 2002, p. 14.
[4] Idem, p. 20.
[5] Barry, Steve Railroads, the history of the American railroads in 500 photos. Salamander Books Ltd., St. Paul, MN, USA, 2002
[6] Ferreira, Manoel Rodrigues. A ferrovia do diabo. Editora Melhoramentos. São Paulo, SP, 2005. pp. 102-108.
[7] Chant, Christopher The world’s railroads. Chartwell Books Inc. Edison, NJ, USA, 2002, p. 22.
[8] Guimarães, Benício O vapor nas ferrovias do Brasil. Editora Gráfica Jornal da Cidade Ltda. Petrópolis, RJ, Brasil, 1993, p. 19.
[9] Barry, Steve Railroads, the history of the American railroads in 500 photos. Salamander Books Ltd., St. Paul, MN, USA, 2002
[10] David, Eduardo Gonçalves A ferrovia e sua história. Edição AENFER-AMUTREM, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 1998, p. 75.

A EVOLUÇÃO DA TRAÇÃO A VAPOR

1. Introdução

Parece que o vapor estimula a imaginação. É possível imaginar esta cena: um fazendeiro de café do Vale do Paraíba, convidado pela administração da Estrada de Ferro D.Pedro II, que cortaria suas terras, para uma curta viagem na cabine de uma locomotiva a vapor, quando desce do trem e consulta seu relógio de bolso chega a conclusões interessantes:
  • as várias tropas de mulas necessárias para transportar toda a carga rebocada pelo trem levariam um dia inteiro para percorrer a mesma distância feita em uma hora;
  • seria preciso duas paradas para alimentação e descanso, enquanto a máquina consumiu apenas água e lenha – recursos que ele tinha com abundância;
  • do maquinista exigia-se muito mais preparo e habilidade do que as de um tropeiro para conduzir suas mulas de carga, era mesmo um trabalho especializado e, por fim
  • havia uma incrível semelhança entre os movimentos das alavancas da locomotiva com as do balancim de seu relógio que acabava de fechar.
Depois de um curto período inicial de muita experimentação, logo as ferrovias se espalharam pelo mundo a partir da Inglaterra, como uma aplicação mais imediata da força do vapor. A tração animal foi relegada, os caminhos e estradas carroçáveis, devidamente adaptados e houve uma rápida integração cultural entre a cidade e o campo.

Ao longo do tempo as locomotivas a vapor foram evoluindo, visando aumentar cada vez mais sua eficiência térmica como máquina com motor de combustão externa. O perfil leve e delgado das primeiras locomotivas foi sendo substituído gradativamente por equipamentos mais pesados e robustos.

Com o crescimento da demanda de transporte por ferrovia, os projetistas de locomotivas tiveram de criar várias soluções, considerando principalmente as limitações da via permanente, como a carga máxima por eixo e o gabarito dos cortes, edificações, túneis e pontes.

Para contornar os problemas de gabarito e aumentar ao mesmo tempo a potência, as caldeiras inicialmente localizadas entre as rodas foram posicionadas acima destas, o que obrigou a chaminé a reduzir sua altura. Com a necessidade de gerar mais calor a caldeira e a cabine passaram a se localizar após as rodas motrizes, exigindo a instalação do conjunto denominado jogo de arrasto. Portanto, mesmo as chamadas locomotivas de primeira geração, foram ficando cada vez maiores.

Precisando se tornarem cada vez mais potentes, a primeira solução foi distribuir seu peso por uma quantidade maior de eixos, visando manter a capacidade de aderência de acordo com a força transmitida pelo êmbolo. Como isto implicava em base rígida cada vez maior, que dificultava a inscrição nas curvas dos trechos de serra, a solução foi dividir a locomotiva em partes, criando-se as locomotivas articuladas.

A segunda geração de locomotivas ocorre com o advento do superaquecimento do vapor, conseguindo economia de no consumo de combustível e água, se comparado com uma de mesma potência trabalhando com vapor saturado. Estas locomotivas constituem a era de ouro do vapor e reinaram por mais de cinqüenta anos.

No final da era do vapor, em meados da década de 1950, surge a chamada terceira geração, com grande potência e desenho aerodinâmico, numa reação à tecnologia das locomotivas diesel-elétricas. Nos EUA foram fabricadas algumas locomotivas vapor-elétricas, com turbinas substituindo os êmbolos. Porém, problemas operacionais, limitações tecnológicas de 50 anos atrás e o baixo custo do óleo diesel estabeleceu a supremacia das locomotivas diesel-elétricas.

Voltar no tempo para conhecer a saga e saber como funciona este equipamento considerado uma obra de arte da engenharia mecânica, além de um passeio cultural pela história, deixa uma indagação tecnológica: existe futuro para a tração a vapor?


2. As Locomotivas Pioneiras

Quando em 1804 o inglês Richard Trevithick (1771-1833) pensou em usar a força do vapor ao invés da tração animal para rebocar carroças de vias férreas, aproveitou de imediato as soluções mecânicas das máquinas aperfeiçoadas pelo escocês James Watt (1736-1819).

Este cientista, que nomeia a unidade de potência elétrica e mecânica do Sistema Internacional (SI) e é considerado o pai da máquina a vapor, trabalhava na Universidade de Glasgow, construindo instrumentos científicos quando, durante a reparação de um modelo de máquina a vapor de Thomas Newcomen (1662-1729) percebeu que poderia resolver sua ineficiência. Patenteou em 1769 o dispositivo condensador de vapor em separado que, evita perda de energia por meio do resfriamento do cilindro e o êmbolo de dupla ação. Formou uma proveitosa sociedade com Matthew Boulton (1728-1809), industrial em Birmingham, que comprou sua patente em 1774, possibilitando o desenvolvimento de outras idéias e a melhora da máquina a vapor que recebeu seu nome, 75% mais potente que a de Newcomen e mais econômica no consumo de carvão, que se tornou fundamental para o sucesso da Revolução Industrial na Inglaterra e outros países europeus.

Desenho da primeira locomotiva de Trevithick de 1804

Trevithick era um hábil mecânico e havia trabalhado na empresa Bulton & Watt. Utilizou um êmbolo para acionar um volante de inércia vertical (flywheel) que através de várias engrenagens acionava rodas motrizes, de sua locomotiva de cinco toneladas que podia desenvolver uma velocidade de 5 km/h, quase a mesma velocidade de um homem caminhando e arrastar cinco vagões com 10 toneladas [1].

Embora como solução mecânica para manter o movimento circular do volante de inércia fosse vantajosa para a transmissão da força horizontal do êmbolo para a biela, produzia por outro lado, danos à via permanente, pela força de reação perpendicular ao plano de giro do volante de inércia. Esta reação ao movimento circular é a força vertical que mantém, por exemplo, um pião girando em equilíbrio em um plano horizontal ou mantém girando uma calota que saia da roda de um carro. Na posição vertical, a reação do giro do volante de inércia tendia fazer a locomotiva de Trevithick querer andar em linha reta. Os trilhos e a pregação frágeis não aguentavam, condenando o projeto ao fracasso.

Em 1808 este pioneiro da locomotiva a vapor já havia abandonado o volante de inércia e criado uma máquina mais versátil, que percorria em velocidade maior uma linha circular, com o sugestivo nome de catch-me-who-can ou “agarre-me se puder”, como uma atração de circo. Alugou uma área onde as pessoas pagavam entrada para ver o estranho equipamento, o primeiro cavalo a vapor. Iam apenas uma vez. Mal sucedido financeiramente pelos problemas decorrentes de utilizar processos já patenteados pelo seu antigo patrão [2], Trevithick morreu sem assistir o êxito de seu invento.

Apesar do insucesso, a idéia de Trevithick deu as bases para que outro inglês, George Stephenson (1781-1848) e seu filho Robert (1803-1859) fossem mais bem sucedidos, ao incorporarem vários aperfeiçoamentos de outras máquinas a vapor que se mantiveram durante toda a era do vapor nas ferrovias.

Dentre os aperfeiçoamentos incorporados por Stephenson podem ser citadas: a caldeira aquecida por tubos por onde fluíam os gases quentes aumentando a superfície aquecida em contato com a água (original de Marc Seguin); o sistema de tiragem forçada do vapor usado nos cilindros pela chaminé dianteira, criando uma zona de baixa pressão para sugar os gases ao longo da caldeira; o vagão tender de água e combustível separados do corpo da locomotiva; os comandos (barra de Johnson) que permite reverter facilmente o sentido de giro das rodas motrizes e até mesmo o próprio nome da máquina, componente principal do novo sistema de transporte que substituía o cavalo: a locomotiva.

Foi com uma máquina denominada Locomotion construída por Stephenson que em 27 de setembro de 1825 foi inaugurada a primeira ferrovia comercial do mundo, com 32 km ligando as localidades de Stockton e Darlington, na Inglaterra. Neste mesmo ano, menos meses depois, no dia 2 de dezembro nascia no Brasil, na Quinta da Boa Vista, o filho do Imperador Pedro I, Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança e Habsburgo, o futuro Imperador Pedro II, que teria um formidável papel na implantação das ferrovias no Brasil.

Réplica da Locomotion de Stephenson de 1825

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Referências Bibliográficas:


[1] Chant, Christopher. The world’s railroads. Chartwell Books Inc. Edison, NJ, USA, 2002, p. 17.
[2] Lamb, J. Paker Perfecting the American steam locomotive. Indiana University Press, Bloomington, Indiana, USA, 2003, pp. 5-6.

domingo, 29 de julho de 2007

Tomada de Decisão sobre Trens Urbanos e de Alta Velocidade

Tomada de Decisão sobre Trens Urbanos e de Alta Velocidade

Qualquer pessoa normal recusaria a oferta de um vendedor para substituir seu computador com processador de texto e impressora a jato de tinta por uma máquina de datilografia. Mesmo se tratando do topo de linha, com esferas intercambiáveis para mudar a fonte e fita corretiva automática. Entretanto, há uns quinze anos atrás, quando o sistema operacional era o DOS, para um gerente interessado em modernizar seu escritório a decisão não era tão fácil. De um lado havia as máquinas de datilografia, inventadas em 1873, confiáveis, que evoluíram gradativamente, das mecânicas às elétricas. Do outro, na ocasião, várias versões de softwares processadores de textos, conflitantes entre si. A qualidade gráfica das barulhentas impressoras matriciais não era boa. Ficar com o passado ou acreditar no futuro, eis a questão.

O Governo, em todos seus níveis, está nesta incômoda posição com relação aos Trens de Alta Velocidade (TAV) e Veículos Leves sobre Trilhos (VLT). O velho sistema, baseado no atrito da roda de aço sobre o trilho, usado desde a primeira ferrovia de 1825 é uma tecnologia madura, capaz de operar com velocidades acima de 300 km/h, nas ligações intermunicipais e versões urbanas com bonito design. Por outro lado, começa a surgir um sistema novo, baseado em levitação magnética (Maglev), que apresenta vantagens, principalmente no que é mais caro numa obra de infra-estrutura, a engenharia civil, estão ainda na infância tecnológica. Que dilema para quem pretende ser um estadista! Continuar dando ouvido aos fornecedores tradicionais, aos técnicos do transporte sobre trilhos, aos consultores que se vendem atualizados ou pensar algo novo? Como ter a visão de futuro indispensável ao estadista?

Para ampliar e enriquecer a discussão sobre as alternativas de aplicação dos recursos públicos em sistemas urbanos e de alta velocidade modernos, um tema que interessa a todo contribuinte, alguns aspectos além da contabilidade devem ser considerados:

Cada passageiro da ponte aérea Rio - São Paulo contribui, por sentido, com 98,08 kg de CO2 para o aquecimento global. O transporte aéreo é a modalidade que mais consome energia. O mesma trajeto feito de automóvel produziria 26,52 kg, de ônibus 13,72 kg. Porque nem toda energia elétrica é de origem hídrica, num TAV a produção seria 3,68 kg de CO2 e no Maglev 2,60 kg. Se andar de trem gerasse crédito de carbono, haveria uma razoável fonte de recursos disponível para financiar o setor.

Trens são inquestionavelmente mais confortáveis, regulares e seguros. Quando bem operada, uma ferrovia é a modalidade de transporte mais competitiva para passageiros: reduz acidentes de trânsito e congestionamentos, diminui o tempo de viagem, economiza combustível, gera valorização imobiliária, aumenta a arrecadação de impostos, promove estruturação urbana e melhora a qualidade de vida do cidadão.

Nas altas velocidades, a levitação eletromagnética possibilita reduções de custos em regiões montanhosas, porque o Maglev, graças ao motor linear, opera em rampas acima de 10% de inclinação, enquanto um TAV comercial está limitado a 2% de rampa. Do nível do mar no Rio até à cota 800 de São, um trem sobe bastante. Mas o Maglev, na descida, virá gerando energia elétrica de regeneração.

Os TAV’s exigem uma manutenção primorosa e para alcançar a velocidade máxima o raio de curva deve ser acima de 2.000 m, mas no Maglev eletromagnético, o trem “abraça” a via e não descarrila. No Maglev urbano não há consumo de energia para manter a levitação vertical e a estabilidade horizontal. Deslocando-se sem atrito e capaz de se inscrever em curvas de 30 m de raio, insere-se facilmente no ambiente urbano e tem baixo custo de manutenção, sem motores, trilhos e rodas para desgastarem.

A engenharia civil costuma representar mais de 60% dos gastos em novos sistemas ferroviários, podendo chegar a 80%. A nova tecnologia de levitação magnética supercondutora, adequada para velocidade urbana, permite a construção de linhas que custam 1/3 do total exigido pelos sistemas metroviários de mesma capacidade e ficam prontas em um prazo muito menor. Economiza recursos numa área onde o Brasil tem completo domínio tecnológico e exporta serviços: a engenharia civil.


Lendo nos jornais os bilhões necessários para investimento nos sistemas ferroviários da tecnologia tradicional, conclui-se que estamos em um país rico. Realmente, o país é rico, mas a população é pobre. O anônimo cidadão que paga seus impostos merece saber como se encontra o estado da arte na área de transportes guiados e deveria ter o direito de opinar sobre algo que será feito para o seu futuro.

Em primeiro lugar, não tem sentido pensar em um TAV interligando a estação de D. Pedro II (Central, no Rio) com a estação da Luz em São Paulo, quando os vetores da expansão urbana apontam em outras direções. Depois, varar a Serra do Mar de túneis para manter a declividade mínima, como fez Cristiano Otoni em 1860, quando existe atualmente engenharia capaz vencer rampas elevadas a céu aberto só tem justificativa porque o projetista ficou preso ao contato roda-trilho. É preciso quebrar velhos paradigmas e não ter medo do futuro – como não teve Cristiano na sua época.

Usando a comodidade da Internet e dispondo de uma base de dados técnicos própria, específica do pesquisador da levitação magnética, desenhei algumas alternativas de traçado que potencializa as vantagens da tecnologia, chegando a números interessantes, como ordem de grandeza: o Expresso Aeroporto em São Paulo e o TAV interligando as duas maiores capitais do país podem custar metade do que está saindo na imprensa, ficando pronta a ligação Rio-SP em no máximo seis anos, melhorando antes disso a mobilidade urbana nas duas cidades. Neste plano, a linha sairia da Barra da Tijuca até Volta Redonda, por um trajeto novo, simultaneamente de Guarulhos até São José dos Campos pela Variante do Parateí, encontrando os dois trechos em Aparecida do Norte. Esses pontos seriam as estações intermediárias.

Quando estes dois lotes de Maglev eletromagnético estivessem sendo inaugurados, já estariam pronto sistemas de levitação baseado em supercondutores. No Rio de Janeiro ligando o aeroporto Tom Jobim, UFRJ, estação Del Castilho do Metrô e da Supervia à Barra da Tijuca, aproveitando faixa de domínio da Linha Amarela, Avenida Aírton Sena e seguindo em via elevada pelo canteiro central da Avenida das Américas até seu final, nos limites do Parque Estadual da Pedra Branca, onde estaria o grande terminal do Maglev de alta velocidade. Em São Paulo o Terminal Rodoviário Tietê, seria interligado ao aeroporto de Cumbica por uma via elevada ao longo das margens do rio de mesmo nome. Por suas dimensões esbeltas, leveza, silêncio e baixo consumo de energia, o Maglev urbano pode aproveitar a infra-estrutura pública existente, valorizando com seu design os locais por onde passa. Ao longo da ligação aproveita áreas de propriedade do governo, com mínimo impacto ambiental, onde atualmente iniciativa privada opera por concessão: Nova Dutra na rodovia e MRS Logística na ferrovia.

Entre terminais tempo total de 93 minutos. Com velocidade média igual à do Maglev chinês em Xangai: Terminal Guarulhos-S.J.Campos 20 min; SJC-Aparecida 21 min; Aparecida-Volta Redonda 25 min e VR-Terminal da Barra da Tijuca 26 minutos.

Provavelmente, por terem ficando atados às limitações da velha tecnologia, quando existe uma nova (excessivamente nova, com detalhes restritos aos centros de pesquisas), os projetistas do Expresso Aeroporto e do TAV RJ-SP não perceberam que existe algo novo, capaz de permitir ao Brasil dar um salto tecnológico e queimar etapas.

Trocar informações é fundamental. Os projetos que foram pagos por recursos públicos deveriam estar disponíveis na Internet com todos seus detalhes. Por que esconder?

Eduardo Gonçalves David
Engenheiro, Doutor em Engenharia de Transportes.
egdavid@pet.coppe.ufrj.br